Ser imigrante na sua própria terra, ou como Lisboa se tornou numa amálgama de gente oriunda das mais diversas regiões do País, fugindo da ruinosa vida rural em que viviam e respondendo ao aliciamento sugerido pelo Estado Novo, no período da expansão industrial e habitacional. Mais ou menos organizados em comunidades, ocupando determinadas áreas e profissões, acabaram por contribuir decisivamente para uma nova imagem de Lisboa, o que lhes valeu ficaram conhecidas para a posteridade pelas alcunhas que então as identificavam naquelas paragens. Perdendo-se no tempo, as razões e origens destas, permitiu que ao longo dos anos se distorcesse o sentido simbólico das mesmas, investindo-as de um carácter negativo, pelo que me parece pertinente relembrá-las aqui, conquanto corra o risco de ser pouco preciso, por muito pouco (ou nada) existir escrito sobre o assunto. Quando se fala dos «Almeidas» estamo-nos a referir aos varredores de Lisboa de outrora, porque estes eram originalmente oriundos da vila de Almeida — Vilar Formoso; quando invocamos «Patos Bravos», estamos a falar de gentes de Tomar e particularmente de construtores civis. Hoje em dia, esta designação está ligada a uma fraca qualidade construtiva e estética. porque em abono da verdade se refere a projetos e obras, nomeadamente saídas de indivíduos pouco qualificados para o efeito e onde o espírito economicista prevalece sobre os mais elementares princípios arquitetónicos e urbanos. Resultado de uma conjuntura político-económica propícia, ao que se associa a conivência dos técnicos, quanto mais não seja, pelo alheamento a que têm votado as suas responsabilidades. No entanto, contrariamente a todo este panorama (em meu ver Tomar é feliz exemplo), os verdadeiros «Patos Bravos» prestaram um valioso e enorme contributo ao País e a Tomar(concelho) em particular; bem assim, como à arquitetura e ao urbanismo. Proporcionaram aos arquitetos as condições para aparecimento de grandes vultos e grandes obras, nomeadamente: Cassiano Branco, Cristino da Silva, Norte Júnior, Pardal Monteiro, Ventura Terra e Alfredo Keil, porque na sua «ignorância» acreditavam que os arquitetos deveriam ser os únicos responsáveis por esta área (arquitetura e urbanismo — bons tempos!!!). Três foram os tomarenses precursores do que é hoje a indústria da Construção Civil — João Vicente Martinho (S. Pedro), Manuel de Matos e Manuel Vicente (Serra), indivíduos de parcos recursos que daqui partiram para Lisboa procurando melhores dias.
Um deles (João Martinho) trabalhando de dia e estudando à noite, lá conseguiu realizar o seu sonho — um Diploma que lhe permitia projetar e construir, princípio que foi seguido por tantos outros. Na foto abaixo, podemos ver um prédio construído em Arroios – Lisboa, da autoria destes Tomarenses.
A atividade dividiu-se em duas fases distintas — «cal e areia» e posteriormente a do «betão armado». A 1ª guerra mundial em 1914 e a posterior recessão económica de 22 a 26 instalou no País, um período de grande crise, caracterizada por uma inflação galopante, o que necessariamente se traduziu em nefastas consequências para uma indústria que dava os primeiros passos.
Tentando desesperadamente aguentar-se alguns construtores viram-se obrigados a recorrer a materiais e processos mais económicos, caindo consequentemente em fracos níveis de qualidade, tendo em atenção o surgimento dos “Fingidos”, ou seja, técnicas de argamassa a imitar cantaris e marmoreados, entre outros. Se a tudo isto juntarmos uma frágil aprendizagem da construção em Gaiola processo construtivo da Baixa Pombalina, estrutura de gaiola, e paredes secundarias em tabiques, tudo em madeira com revestimento a argamassas e exteriores alvenaria facilmente se compreende o termo de Gaioleiros com que foram alcunhados (sentido negativo que ainda hoje tem um certo peso e que infelizmente se generalizou). Esta fase dramática culminou com a publicação do Dec. Lei 15.289.
Época conturbada e difícil, fez que muitos desistissem definitivamente, entrassem em falência ou como o caso de João Martinho regressassem à sua terra natal para aqui desenvolverem de modo tão meritório, a atividade de projetistas e construtores. Das canetas deste “saíram” edifícios, que tão condignamente representam um período tão importante da história da construção e arquitetura portuguesa, em particular na Cidade de Tomar, como é ilustrado pelas fotografias dos prédios sito R da Corredoura. Uma pergunta me resta fazer! — Afinal quem é quem? Isto é, o «Pato», tá bom de ver!
Quanto ao termo «Pato Bravo», deve-se ao que sei, a relação simbólica do carácter migratório da ave (passa época aqui... e por acolá) e ao facto de também os construtores civis fazerem mais ou menos o mesmo — semana em Lisboa a trabalhar... fim-de-semana na sua terra natal. Por outro lado, há quem defenda que a designação em causa, se deve principalmente aos «mimos» que as populações ribeirinhas do Zêzere trocavam entre si antes da construção da Barragem do Castelo do Bode, mais uma vez baseada na passarada da zona. Assim, o lado de Martinchel mais povoado, logo com maior densidade de casario, fazia com que aquela zona fosse escolhida por Peneireiros, Gaios, Corvos e Milhafres, em busca dos “resíduos” das lavragens e dos pintaítos que por ali pululavam, enquanto a área de Alverangel, S. Pedro de Tomar entre outras, menos populosas privilegiava o aparecimento de Patos Bravos e galinholas. Ambas me parecem credíveis, aliás complementares.
Arq. Mário Pedro
Artigo disponível na edição nr 13 (Set / 2022) do Boletim "O Tomarense".
1º Prédio construído no ano de 1906 (ao que consta) na R. Pereira de Carrilho 32 ( Arroios) Fonte: Filius Populi – Os construtores Civis Tomarenses e o desenvolvimento da Construção Urbana em Lisboa – 1946 |
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João V. Martinho | Manuel de Matos | Manuel Vicente Fonte: Filius Populi – Os construtores Civis Tomarenses e o desenvolvimento da Construção Urbana em Lisboa – 1946 |
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